#05 | Como escreve a escritora que não vive só de escrever?
Como arruma tempo na vida pra escrever, quando se tem que fazer outros trabalhos para viver? Essas perguntas rondam minha cabeça. Escrevi sobre isso – e convidei amigas escritoras para responderem
Escrever é o que mais quero fazer. E é quase a última coisa que eu consigo fazer no dia, ultimamente. Porque o dia é cheio demais. As demandas, infinitas.
Como escreve a escritora que não vive só de escrever?
Como arruma tempo na vida pra escrever, quando se tem que fazer outros trabalhos para viver?
Essas duas perguntas rondam minha cabeça faz um tempo.
Escrever é meu ofício. Mas tempo para a escrita (de um novo livro, por exemplo) eu ainda preciso cavar, com muito custo, no meu dia a dia.
Porque nesse dia a dia, além de escritora, sou, também, ativista e dona de empresa. Preciso fazer tanta coisa… Só dessa segunda atividade, preciso prospectar, montar apresentações, atrair clientes, fazer o trabalho, que nunca tem fim.
Nem sonho mais com a ida para as montanhas num silêncio que me fará ouvir tudo o que tenho a dizer.
Mas ainda desejo um desenho de rotina em que escrever seja a prioridade – e que todo o resto venha depois.
Será que é possível?
Me deparo com alguns problemas. O primeiro é a mania de “arrumar a mesa” antes de começar. Sabe quando você resolve fazer uma faxininha pra deixar o cantinho mais agradável? Tô falando da mesa, mas também tô falando da pilha de emails, dos Zaps, daquelas tarefas que tão piscando na lista e, se forem feitas, podem liberar mais espaço no hd mental. Será?
O segundo é o entendimento de que arrumar a mesa é uma tarefa que nunca tem fim. Logo, acabo deixando a escrita para o tempo que “sobra". E, além de sobrar sempre pouco, tem uma questão conceitual aí. Se o mais importante é feito quando dá, nas brechas, será que vou conseguir fazer bem? E mais do que bem, será que é justo?
Não tenho ficado feliz em escrever quando dá, quando cavo tempo, quando insisto por um espaço.
Quero dar para a minha escrita o espaço que ela merece. Quero que ela seja a protagonista, e não a coadjuvante dos meus dias. Quero fôlego, e não apenas brechas. Quero tempo. Quero espaço. Quero prioridade.
E quero há tanto tempo!
Quando vou, finalmente, conseguir?
Fui perguntar para algumas amigas escritoras como elas lidam com essas questões.
Pra começar, Clarice Freire, autora de “Para não acabar tão cedo” (Record) e “Pó de lua”:
“Lutei muito até entender que é nas brechas onde escrevo mais. O tempo privilegiado, limpo e só é a exceção, o luxo. E é imprescindível também, claro. Que ninguém se engane. Mas a escrita, na minha realidade de mãe de um bebê e que trabalha em diversas outras coisas, é tentar conseguir as melhores e mais duradouras brechas que estiverem ao meu alcance e me alegrar com elas, ser inteira nelas. Também é tentar racionalizar todas as vezes que não consigo, porque não escrever é se sentir um pouco sem ar, lidando com a frustração do não escrito na hora que deveria ter vindo. Às vezes, no trabalho, me sinto ‘comprando horas de escrita’. Trabalhar para comprar tempo livre para escrever é possível? Mais ou menos. Mas acho que a gente faz um pouco isso. Clarice Lispector falava que as pessoas a viam, muitas vezes, sentada em uma cadeira e pensavam que ela não estava fazendo nada, mas estava escrevendo. Isso é outra verdade. A gente vai apreendendo a vida, anotando os estranhamentos, guardando as ideias, vendo o mundo, para o momento de poder desaguar, quase como quem guarda uma boa notícia num silêncio cúmplice. Mas não é fácil. É luta diária de tentar desafogar ao máximo as obrigações para escrever com um pouco menos de culpa e um tanto mais de deleite de quem sabe estar fazendo o que precisa para respirar.”
Na sequência, Lorena Portela, autora de “O amor e sua fome” (Todavia) e “Primeiro eu tive que morrer” (Planeta), que fez sua estreia por aqui recentemente:
1. Escreve se espremendo entre a obrigação de pagar as contas e a obrigação (autoimposta) de escrever. Escreve se esforçando pra manter uma rotina, pra manter a concentração, pra manter a motivação e pra não contar com a ideia de que a recompensa financeira virá. Talvez essa seja a parte mais dura: nem sempre (quase nunca) receber uma remuneração justa pelo seu trabalho.
2. No meu caso, foi abrindo mão dos benefícios e salários de um trabalho de tempo integral e escolhendo trabalhar meio período, que é uma prática bem comum aqui na Inglaterra. Não é o melhor dos mundos porque, se trabalho menos dias da semana, ganho menos, mas foi o equilíbrio que encontrei e, pra ser bem honesta, hoje me pergunto: como eu já trabalhei 5 dias por semana num emprego formal? Quando que isso deu certo?
Agora, Lubi Prates, autora de, entre outros, “Um corpo negro” (Nosotros). Ela também está por aqui:
1. Eu gosto muito do que a Glória Anzaldúa diz no seu texto "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo". A grande maioria de nós, escritoras, não tem nem dinheiro e nem um teto todo seu, só tem a urgência de escrever e contar suas próprias histórias. Então, a gente escreve: dentro do ônibus ou no metrô, entre uma tarefa e outra, antes de todo mundo acordar, no horário de almoço ou quando todos já foram dormir, enquanto amamenta/alimenta a sua criança ou quando ela está na escola. Acho que a nossa escrita se faz nas brechas, mesmo que consigamos abrir um tempo maior e constante na rotina para escrever, simplesmente porque não é apenas escrever que nós precisamos fazer.
E, eu acho importante enfatizar, de forma alguma eu romantizo a experiência da mulher que escreve, entre tantas tarefas. Todas nós deveríamos ter um teto todo seu e dinheiro para amenizar as preocupações que, muitas vezes, impedem a escrita.
2. Eu ainda escrevo muito nas brechas, principalmente, poemas e textos curtos, mas depois que me tornei mãe, percebi que ter um tempo semanal para a escrita seria fundamental, principalmente, nos casos de narrativas mais longas. Uma tarde na qual eu não vá agendar nenhum outro compromisso e possa apenas escrever, sem distração ou interrupção. É um esforço tremendo porque não depende só de mim (como era antes da maternidade), mas de uma rede que respeite a minha necessidade de continuar sendo eu e de fazer o que é importante para mim.
Pra fechar, Gabriela do Amaral, autora de, entre outros, “Acidentes tropicais" e “Língua-mãe”. Ela também faz a belíssima newsletter Cascata:
1. Haja disciplina! Acho que depende de muitos fatores. Tempo disponível. Desejo. Gênero da escrita. Poesia, por exemplo. Ela acontece. É um impulso que precisa ser aproveitado. O início (e às vezes o fim) pode acontecer em qualquer lugar. O negócio é ter papel e caneta pra anotar, ou um bloco de notas do celular. O depois é edição e montagem. Romance, novela, ensaio, é diferente. Você precisa estar disponível. Separar um tempo. Estabelecer uma rotina. Marcar um gesto. Criar uma janela. Marcar uma postura. Abrir um espaço. Acho que começar pequeno é sempre uma ponte pra essa possibilidade. Hora do almoço. 30 min pra comer. 30 min pra escrever? De segunda a sexta. O que acontece? É testar. Só se sabe escrevendo. Estando disponível. E não olhar. Não julgar. Estar no mar aberto esperando a onda vir. Uma outra coisa que funciona muito também (pelo menos pra mim!), é se matricular em oficinas de escrita. De contos, poesia, ficção, oficinas em que se produza textos. Ter aquelas duas horas semanais te obriga a parar pra escrever. É um espaço que se abre. Mas a verdade mesmo é que acho que estamos sempre escrevendo. Pensando em frases, inícios, pautas, o grande lance é ter disciplina pra materializar e tecer todos esses fragmentos. Sentar e colar essas pecinhas soltas. Acho que situações limites também movimentam muito. No meu caso, o que me levou a escrever o primeiro romance foi o luto que estava passando quando o meu pai faleceu. Ou eu escrevia. Ou eu escrevia. Precisava me reorganizar. E aí no limite da minha sanidade mental consegui derrubar todas os outros chamados insistentes da vida, ativar uma rede de apoio e garantir 3h diárias na biblioteca. Ou era aquilo ou eu ia pra um buraco. Também aconteceu quando a minha filha nasceu. Escrevia no bloco de notas do telefone enquanto amamentava. Acho que no fim as situações limites fazem a gente dar um jeito. Quase como algo que transborda. Mas que ruim esperar o limite acontecer também né? Hoje sinto que a minha urgência em escrever aumenta quando a minha filha está de férias, por exemplo, e tenho menos tempo ainda pra escrever. O desejo da escrita nasce também dessa limitação. Por isso acho que restringir um tempo, 30 min diários, por exemplo, ajuda muito.
2. Eu gosto muito de pesquisar como as outras escritoras e artistas fazem isso. Como você está fazendo agora. A Lúcia Berlin por exemplo escrevia na cozinha quando os filhos estavam vendo tv na sala, "escrever apesar do caos". A Clarice Lispector gostava de acordar antes da casa inteira se levantar para escrever. A Susan Griffin fala sobre escrever com interrupções mesmo, que a escrita de uma mãe, por exemplo, é uma escrita interrompida. E isso seria algo pra gente pensar, incorporar, aceitar a forma. Mas obviamente está cheia de frustração e culpa. Sonhamos com a continuidade. A Gloria Anzaldúa que diz que mesmo com o casamento, ou trabalho, ou crianças “nós vamos ter tempo pra escrever” “Esqueça o teto todo seu - escreva na cozinha, se tranque no banheiro ou na fila da assistência social, no trabalho ou entre as refeições, entre o sono e a caminhada.” O Cruzeiro Seixas, artista português que pesquisei no meu mestrado, por exemplo, trabalhava 8h por dia e teve a sua obra toda feita nas gavetas dos empregos que teve. Uma obra de gaveta, do tamanho dos cadernos que ele escrevia, desenhava e acreditava que eram documentos de um não viver, uma arte de gaveta. Quantas de nós temos uma arte de gaveta? Há uns 4 anos antes de começar a escrever o meu primeiro romance fiz uma lista de dicas para mães escritoras baseada na minha experiência pessoal, gosto muito dessa lista, pode ser que ajude a pensar, cá está.
Escreva capítulos curtos. Lembre-se de que você voltou a ler romances quando descobriu a possibilidade dos capítulos curtos. Talvez seja um caminho para escrevê-los também.
Exercite a sua paciência. Coisa difícil pra uma ariana, mas que você tem exercitado desde que foi mãe. Se você consegue fazer com a sua filha então você consegue fazer com a escrita.
Controle a sua ansiedade. Yoga e caminhadas ajudam muito. Ah, e chá de camomila antes de dormir.
Não tente encontrar a hora perfeita pra escrever. Ela não existe. A não ser que você faça como Clarice e acorde às 4:30, antes das crianças,e escreva até elas acordarem — mas como fazer isso se passei 1 ano e meio sem dormir? — agora ela dorme e eu quero é dormir também. Escreva nas brechas.
Escreva com pouco, um pedaço de papel basta pra você, bloco de notas, whatsapp, enquanto corto cebolas, enquanto dou banho, escreva no passeio matutino e anote tudo ao primeiro encontro com a materialidade visível de uma superfície. Mas escreva.
Seja uma mãe que escreve e não uma mãe que é escrita.
Não se feche para as intervenções diárias da pequena. Deixe que ela te alimente. Ela também é artista.
Não se esqueça de viver enquanto pensa nos próximos projetos. Se Cesariny dizia que o poeta é aquele que vive, se Pedro Oom dizia que pode-se escrever sem caneta, e Berlin dizia que escrevia em meio ao caos porque você não conseguiria viver e desse corpo vivo escrever?
Não tenha medos autobiográficos.
Esteja em constante diálogo com alguém. Se apaixone, por um escritor, por uma escritora e escreva com ele, para ele. Você precisa estar lendo pra escrever.
(fui fazer o almoço e ainda veio isso na minha cabeça!)
Mas na verdade, na verdade mesmo é que se a escrita não fosse um trabalho precarizado a gente nem precisava estar tendo essa conversa né? Ninguém precisaria ter outros empregos ou ter que ficar fazendo malabarismos. Acho que um dos grandes problemas e me incluo nesse pensamento às vezes é pensar que o escritor não é um trabalhador, um operário, porque na cadeia de produção literária ele é o que ganha menos? Porque tanta gente escreve de graça só pra ser publicado? Porque não conversamos mais sobre isso? Porque parece tão glamouroso sendo que não é sustentável? Eu tenho adorado as reflexões da Jarid Arraes sobre o tema na página dela do Instagram. E aí claro que quando vamos ainda pro nicho mães escritoras. Eita, escrita e cuidado, dois trabalhos precarizados, sem valor nenhum na nossa sociedade de hoje e que demora anos até ter um retorno do capital. Quem consegue nos dias de hoje investir nisso? Aí é malabarismo atrás de malabarismo. Dar oficina, abrir vagas pra mentoria literária, concorrer a bolsas, aliar a escrita com um possível doutorado. Hoje a minha grande pergunta tem sido como viver financeiramente da escrita? Eu estou tentando descobrir e queria muito que desse certo. E acho que essas suas perguntas podem ajudar a gente a tecer um caminho. Mas é preciso que as conversas sejam mais honestas!
Que sorte poder trocar com essas escritoras que eu tanto admiro. Como é bom quando a gente divide o que se passa dentro da gente. E, mais ainda, quando a gente aprende com outras mulheres.
Adoraria ouvir vocês que me lêem, que nos lêem. Como você defende o tempo para a sua escrita? Como equilibra a escrita com a vida te pedindo tanta utilidade?
Acredito que a gente cresce quando troca. Que a gente sai das nossas angústias quando as dividimos com mais gente. Acredito, também, que refletir sobre isso tudo é reforçar nosso compromisso com a escrita. Que ela seja a protagonista dos nossos dias. Uma hora a gente consegue.
Dani, que importante essa edição! Gostei muito de ler você, Clarice, Lubi, Lorena. E acho que no fim é na brecha que a magia acontece né? E fiquei pensando, acho que arrumar a mesa é começar a escrever. Que cadernos ficam, que livros ficam, quais vão pra estante. Com quem você quer conversar? Enfim, passaria o dia conversando com vocês. Obrigada pela faísca/provocação, amei participar. Vamos juntas!
Dani, que texto necessário. Simplesmente amei. Além de enxergar em todas vocês as minhas dificuldades em priorizar a escrita, me inspirou demais. Obrigada por esse conteúdo rico.