#06 | Cute, comfy & cozy... Pelo amor de café com deus pai!
O fenômeno dos livros para colorir impressiona, mas me deixa encasquetada com a perda de espaço para leitura, inclusive de não ficção escrita por brasileiras
Demorou mais de um ano, mas, finalmente, instalei a impressora que comprei pra revisar meu livro antes de mandá-lo para a editora. Não deu pra fazer o que eu queria quando precisei, tamanha a inabilidade tecnológica, que eu achava que demorava mais pra chegar. Quando consegui ligá-la, a primeira coisa que fiz foi mostrar pro meu filho sua função (quase acrescentei que os maias e os incas usavam muito o artefato).
Imprimimos um desenho da Patrulha Canina e passamos as próximas horas pintando cada detalhe, o que me deixou impressionada com o tempo de engajamento de uma criança tão pequena numa atividade como colorir. Achei gostoso ficar ali usando lápis de cor, hidrocor (que em São Paulo chamam de canetinha), concentrada numa atividade que ainda rendeu ótimas conversinhas entre mãe e filho. Ele me contou dos meninos chatos da escola, das brincadeiras com a parte mais legal da turma. Foi tão gostoso. Nosso momentinho <3
Fiz tamanho nariz de cera pra dizer que sou a favor de qualquer atividade que nos faça sair das telas, que nos estimule a usar os sentidos, que ative outras áreas do cérebro.
Mas galera: bora falar dessa febre dos livros de colorir?
Fiz um post na Contente falando que a gente pede pra inteligência artificial escrever nossos emails de trabalho, quando abre o streaming recebe uma recomendação do que assistir, troca boas histórias por livros de colorir. Pronto. Foi o suficiente pra entender a dimensão da coisa.
Algumas respostas: “Meu deus problematizaram até COLORIR LIVROS";
“Leitura é sim fundamental mas esse post parece que foi escrito pra valorizar quem lê, parece que foi feito por um adolescente de 2014 que se acha muito pq lê e despreza outras formas de inteligência ou de distração";
“Quem criou esse post claramente tá detestando a moda do Bobbie goods, militou no extremo e esqueceu que colorir é um descanso pra mente em uma era de coisas tão estimulantes, tá criando post na Internet ao invés de ir ler um livro (ironia). Todas as formas de arte são necessárias e fundamentais p/ o ser humano.”
Vale destacar que a comunidade da Contente (aliás, já assina nossa newsletter?) é a melhor que existe na internet (tenho viés, lógico, rs), e também recebemos respostas assim:
“Entendo a proposta do post, gosto muito do convite, mas não deixo de pensar como a vida tá mais que puxada. Tá moendo a gente a ponto de matar nossas vontades. É triste, mas às vezes a gente deixa nosso cérebro atrofiar pra conseguir chegar ao próximo dia (e não tô dizendo que isso é legal, mas é o famoso “modo de sobrevivência”). O trabalho e os afazeres domésticos consomem tanto nossa energia que no final do dia a gente só quer desligar os pensamentos. Resistir e repensar nossa relação com trabalho, telas, essa relação passiva com as plataformas e etc é essencial. Mas *também* é importante tirar essa discussão do âmbito individual e refletir no coletivo: o que tá fazendo geral buscar prazer em “scrollar” infinitamente o feed? Por que a gente tá tão exausto que não conseguimos ter energia pra ler um livro sequer? Ou manter um hobbie antigo, por exemplo?”
Gosto quando a coisa vira uma conversa. E esse é exatamente o meu ponto: o que a gente vai fazer com essa exaustão gigante que não nos deixa com energia para ler um livro sequer?
Esse cansaço explica, talvez, porque as livrarias se encheram de livros de colorir, num novo boom de vendas, como há dez anos. E nos familiariza com Bobbie Goods. Ele é fofo mesmo, deu até vontade de comprar um exemplar, principalmente agora que a febre chegou nos stories das minhas amigas, que postam suas artes e relatam um grande relaxamento da mente (quase que deu vontade de escrever um relaxa-mente, rs) que sentem ao colorir cada página .
Da PublishNews: Entre os 20 livros mais vendidos em livrarias brasileiras, 12 são livros de colorir. Os dados são da Lista de Mais Vendidos do PublishNews desta sexta-feira (4 de abril), que contabiliza as vendas em 39 redes e livrarias brasileiras entre os dias 24 e 30 de março de 2025. (…) Segundo dados da Nielsen Bookscan para a Folha de S.Paulo, os livros de colorir venderam mais de 150 mil cópias entre o final de dezembro de 2024 e o início de março deste ano no varejo brasileiro.
Quando li isso, fiquei impressionada. E surpresa também. Como assim livros de colorir podem figurar na lista de livros mais vendidos de não ficção?
Continuamos:
Da Folha de S.Paulo: As histórias remetem ao gênero literário ‘cozy’, popular entre os jovens desde a pandemia, buscando oferecer uma experiência aconchegante e tranquila. Assim, tudo na estética do desenho é pensado para atingir esse conforto: o traçado grosso combinando com espaços mais amplos —mais fáceis de colorir—, a "fofura" na fisionomia das personagens e até mesmo as cenas em que estão inseridos.
E só mais uma coisinha:
Da Folha de S.Paulo: O que começou como uma estratégia para "dar um descanso aos neurônios" evoluiu para algo maior: uma corrida por materiais e técnicas sofisticadas, outra diferença em relação à tendência de uma década atrás. Entre a geração Z, surgiu uma demanda por "itens essenciais" para colorir os desenhos. A lista vai de canetas com 48, 64, 120 ou 320 cores, que podem chegar a até R$ 1.500, gabaritos para testar tonalidades e cursos e oficinas pagas que ensinam a colorir.
Livros que têm no título palavras como “cute", "comfy", “cozy". Livros fofos, confortáveis, aconchegantes. Sei que estamos em pleno colapso do fim do mundo e que precisamos de qualquer distração que nos ajude a seguir com o dia, mas uma lista dessas me faz pensar em tanta coisa. Resolvi dividir com vocês. (E nem vou entrar na seara do preço dos livros, depois de ler essa informação acima, rs)
A primeira é: a perda de espaço de leitura na vida de muita gente.
Tá todo mundo exausto e cansado e correndo. Quando a gente descansa (quem ainda tem esse privilégio), é rolando o feed das redes sociais. Não à toa, “brain rot” foi eleita a palavra do ano de 2024 pelo dicionário Oxford. Um “apodrecimento cerebral", uma canseira que não passa. Essa mente acostumada a pular de uma aba pra outra, salvando pra ler, ver e ouvir depois uma quantidade de conteúdo que nunca daremos conta de consumir. Ler um livro? Pra quê? Temos que otimizar o tempo, ser produtivos, buscar referências, saber de tudo da cultura, ver as séries e novelas da vez. Só de escrever já cansei.
Do G1: “Considerando a estimativa populacional brasileira, os dados apontam que o país tem atualmente 93,4 milhões de leitores (considerando a população com cinco anos ou mais). Nos últimos quatro anos, houve uma redução de 6,7 milhões de leitores no país, de acordo com os dados.” Diz a pesquisa “Retratos da Leitura”, feita pelo Instituto Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria). E segue: “Considerando apenas livros lidos inteiros, a média é de apenas 0,82 por entrevistado.” Nem um livro inteiro durante um ano. A pesquisa aponta que 53% dos entrevistados não leram nem mesmo parte de uma obra nos três meses anteriores à pesquisa.
É um buraco gigante. Aqui no Substack parece que fazemos parte de uma bolha maravilhosa em que muita gente lê – e escreve –, quase como se estivéssemos na era de ouro dos blogs. Lá fora, a gente tem a capacidade de concentração igual a de um peixinho dourado.
A segunda é: a perda de espaço na mídia para que se fale sobre livros. De não ficção, então…
Por onde vocês se informam sobre livros? Qual é o papel dos cadernos de cultura na disseminação de títulos? As revistas, como andam? A gente consegue fazer uma lista sucinta com o espaço dedicado aos livros nos meios culturais do Brasil. As redes sociais ajudam um monte com perfis dedicados a isso, com os bookfluencers etc. Ainda bem! Que bom que tem tanta gente lendo e comentando e postando, isso faz toda a diferença na trajetória de um livro.
Sinto falta de espaço para livros de não ficção escritos por brasileiras. (Na lista que citei da PublishNews, além dos livros de colorir, temos cafés com deus pai e afins.) Essa falta se baseia na minha percepção de autora estreante nessa seção da livraria, viu? Meu livro rende tanto assunto! Nem é porque eu tô querendo vender o peixe, mas é porque tenho tido retornos lindíssimos de leitoras. Ele interessa, ele está sendo lido, mas é luta pra conseguir espaço para divulgá-lo.
Sou a favor de a gente criar uma categoria de livros de colorir para que eles continuem com seu destaque. Mas que tal colocar luz em não ficção escrita por brasileiras e brasileiros também?
A terceira é: o excesso de internet e de trabalho vão atrofiar nossa capacidade de leitura e nos colocar num limbo de sedentarismo cognitivo.
E a inteligência artificial ainda vai corroborar muito pra esse cenário. Eu ando apavorada. Muita gente entra na trend, faz seu personagem do Studio Ghibli, vêm os posts falando sobre o gasto de água do ChatGPT. Mais do que isso, eu penso na facilidade que é pedir pra inteligência artificial fazer o que a gente precisa. Se eu uso? Uso. Com muita parcimônia. Pra escrever? Jamais. Não dá, não quero o ChatGPT descobrindo como eu escrevo e emulando meu estilo.
Entendo quem recorre à IA para facilitar o trabalho. Mas a gente não está trabalhando menos porque a IA consegue resolver umas questões pra gente, né? A gente não só continua trabalhando demais como agora ainda tem mais uma demanda: entender como pode usar melhor a IA. É o já clássico pensamento: queria a inteligência artificial trabalhando no meu lugar, lavando minha louça, enquanto eu fico no campo pintando uns quadros, ou escrevendo meus livros. Mas parecemos cada vez mais distantes dessa realidade. Então bora prestar atenção no tamanho do BO. E defender nossa humanidade quando o mundo nos quer tanto como robôs.
A quarta é: bora desenhar, mas bora ler um pouquinho todo dia também?
Uma vez escrevi: troque stories infinitos por boas histórias. Acho cada vez mais atual. Imagina se a gente consegue colocar 15 minutos de leitura por dia na nossa rotina? Tem dia que não dá, bem sei. Eu mesma tenho sentido muita dificuldade em retomar o meu ritmo. Mas nas últimas semanas resolvi ler um pouquinho nem que fosse só pra constar. Precisei de poucos dias pra já retomar o hábito.
Na vida que a gente tem, com tantas demandas, a leitura pode ficar pra depois. Mas a leitura nos aterra, nos orienta, amplia visão de mundo, deixa a gente melhor, deve baixar o cortisol e, sem dúvida, faz o nosso cérebro parar de abrir tantos pop ups no meio dos pensamentos.
Como a gente faz pra estimular mais a leitura? E para recuperar os milhões de leitores perdidos? Que espaço a gente dá para livros em veículos que falam de cultura? Em eventos literários, que tal colocar mais autoras de não ficção nas mesas também? Aliás, como a gente pode parar de reduzir livros escritos por mulheres a livros que contam experiências pessoais? Como a gente faz livros com palavras serem adorados como Bobbie Goods? Como a gente aprende a descansar o cérebro lendo também?
Quem tem o hábito da leitura sabe como isso muda o dia, a respiração, a cabeça e a vida. Então beleza que colorir ajuda demais, eu vou comprar um desse pra ver qual é. Mas bora ler também? Pinta desenho o quanto você quiser, mas tenta reservar um tempinho pra leitura. Nossos cérebros agradecem não só hoje, como num futuro próximo também.
Penso bastante no fato de que vivemos uma infantilização da cultura de massa. Nem gosto desse nome, porque infância ao meu ver é algo muito sagrado pra carregar conotação negativa, mas é isso. Produtos que atendem uma faixa etária de 8 a 80 anos. Vemos isso em filmes, livros, e agora… em livros de colorir. Já que é assim, seria massa a gente voltar a colorir “Almanacão”, pra pelo menos ser algo culturalmente brasileiro.
Vou lançar mais lenha no fogueira, pela perspectiva de uma leitora que também colore há cerca de 4 anos: Bobbie Goods e similares em minha visão é uma tiktokrização dos coloridos. Colorir com lápis de cor desenhos complexos leva tempo, por vezes semanas. Mas os BG, com seus desenhos simples e fofos, coloridos com marcadores, agilizam o processo e a dopamina de alcançar o resultado final. Ninguém tem paciência para esperar por mais nada. E paramos de aproveitar o processo para valorizar o resultado (o que importa é o desenho finalizado, assim como o livro todo lido). Passar dias, por vezes semanas, para terminar um livro parece demais nos dias atuais. Dito isso, confesso que me rendi e comprei meu primeiro Bobbie Goods esta semana, hehehhehe. E vamos tentando achar o equilíbrio entre desligar e ligar a mente. Nosso momento atual não é para principiantes...